Antonio Carroça - www.rottweiler.com.br
Vocês humanos são esquisitos demais! Me lembro que meus antepassados diziam que nós, descendentes dos lobos, tínhamos medo dos homens. Hoje eu entendo o porquê. Meu avô me contava essa história, que foi passada para o meu pai e hoje, por sua vez, passo aos meus filhos.
Existe uma história que é contada de geração em geração canina, que certa vez, numa floresta, alguns nativos estavam assando carne em uma fogueira. Eram índios e, como tal, sempre sentavam-se à beira de uma para fazerem suas refeições.
Numa dessas noites, um lobo parou e ficou observando atentamente todo o comportamento daquele grupo. Não se intimidou e ficou ali, parado, quieto no canto, observando tudo, mas morrendo de medo. A matilha toda bateu em retirada, quando um índio levantou e apontou sua flecha contra nosso grupo. Mas eu não tive medo. Fiquei ali parado, observando.
E sabia que aquele índio não iria me ferir. Me sentei e fiquei olhando atentamente nos seus olhos. Ele então deu um doce sorriso e se sentou, balançando a cabeça em tom de desaprovação da minha atitude.
Eu sei o que ele pensou naquele momento. Mas resolvi testá-lo até o último instante, mesmo sabendo que poderia ter perdido minha vida. O índio achou que eu iria roubar sua carne e sua água. Mas como cão, sou fiel e jamais teria esse tipo de comportamento.
Todas as noites, os índios se sentavam à beira da fogueira para se aquecer do frio intenso da mata e fazer suas refeições. Eles também cantavam e dançavam. Eu ia até a beira do acampamento só para ficar olhando, mesmo tendo minha matilha me advertido várias vezes por essa atitude. Meu grupo não ia mais comigo. Tinham receio que eles poderiam nos matar. Mas eu não. Eu confiava plenamente naquele índio, pois vi sua alma através de seus olhos. A alma daquele índio era boa demais...
Ele era justo, nobre e fiel até a morte, caso fosse necessário para salvar seu grupo. Ele era muito parecido comigo.
Durante muito tempo acompanhei aquela tribo. Até que um dia aquele bom homem levantou e me jogou um pedaço de carne fresca, tenra e macia. A mesma que oferecida às crianças de sua tribo. Me senti muito bem com aquele gesto! Peguei meu naco de carne e fui ter com minha matilha, onde compartilhei da carne com nossos filhotes e com nossa matriarca.
Aquele gesto do índio me fez tão bem que todas as noites eu voltava ao grupo. Mas dessa vez ia acompanhado de minha matilha e conforme minhas instruções, eu ordenei ao grupo que não mostrasse nenhuma hostilidade com aqueles bons homens.
Dia após dia íamos nos aproximando mais e aquele grupo, que outrora parecera hostil, cada vez mais se mostrava mais carinhoso e mais contente com nossa presença. Todos os dias ganhávamos nossas prendas e voltávamos para a floresta.
Até que um dia, conversando com nosso grupo, resolvemos ficar e nos aproximar de vez, mesmo sendo advertido por alguns de nossos membros que não deveríamos confiar plenamente neles.
Quando nos aproximamos da tribo, nossos corações estavam muito palpitantes, mas estávamos excitados demais com aquele encontro. E todas as crianças e todo o grupo nos recebeu com imensa gratidão. Ganhamos afagos, carinhos, beijos e muitos, muitos abraços apertados. Que alegria poder sentir aquilo! Choro só de lembrar meu avô me contando essa história.
Daquele dia em diante, nunca mais voltamos para a floresta. Ficamos definitivamente com aquele grupo que tanto nos agradava sem ao menos entender o porque. Eu e os mais velhos de minha matilha íamos para dentro da floresta caçar e invariavelmente nunca comemos antes de oferecer nossa caça ao nosso tão querido e estimado grupo.
Eles preparavam suas refeições à beira da fogueira e nós comíamos o resto da caça. Nunca nos preocupamos em receber as sobras. Nossa alegria era tanta que a gente não ligava para isso. E assim, durante séculos e séculos foi nossas vidas. Sempre nos dedicamos à eles. Gostamos deles do jeito que são e não sabemos e nem entendemos qual a razão.
O tempo passou e esta história vem sendo passada por toda nossa família, para as futuras gerações. Muita coisa mudou de lá para cá. Entre essas mudanças, viramos objeto de desejo das pessoas. Nos colocam como se fôssemos prendas maravilhosas, nos mostram troféus, nos exibem como jóias raras. Eu não entendo para que serve tudo isso, mas enfim, aceito porque eu nunca vou deixar de gostar deles.
Um dia, entrou um deles em nosso território e fizeram mal ao nosso dono. Queriam tirar-lhes suas coisas. Ameaçaram os filhos de nossos amigos que para nós são nossos filhos também. Me escondi sorrateiramente num canto de nosso território quando ouvi o chamado do meu amigo, ao qual eu prontamente atendi. Ele pedia por socorro e eu podia sentir o cheiro do medo lhe saindo pela pele. Mas nosso espírito de luta não mudou. Sempre defendemos nossas casas, nossos filhos e nossos donos, independentemente da situação ou lugar. Estamos sempre prontos ao combate para salvá-los.
Eu então corri e pulei naquele que não era meu dono. Ele tinha um olhar mau nos olhos e eu podia sentir isso pelo seu cheiro. Tinha ódio em seu coração e não gostava dos nossos amigos. Eu não queria fazer aquilo, mas tive que tirar-lhe a vida. E o fiz como se estivesse lutando pela minha própria. Mesmo cambaleante, ele se levantou e então eu ouvi um barulho enorme como nunca antes tinha ouvido em minha vida. Parecia que um raio tinha caído sobre mim. E eu não consegui mais me levantar e, fiquei ali, sem poder fazer nada, enquanto ouvia outro raio caindo sobre meu amigo que também caía ao chão sem vida, enquanto ele se afrontou para salvar a minha.
Então já éramos 3 sofrendo, deitados ao chão e eu olhando para meu amigo. Ele me olhava nos olhos e eu podia ver o que ele sentia. Estava tremendo e sentido muito frio, exatamente como eu. Eu não conseguia me mover. Não podia fazer nada para ajudá-lo, mas se pudesse daria minha vida para salvar a dele, se essa troca pudesse ser feita.
E o meu grande amigo se foi...
Eu já não servia mais para eles. Eles não me queriam mais. Meus amigos... minha vida... minha família. Eles me abandonaram à minha própria sorte. Eu não tinha o que comer nem beber e ficava perambulando pelas ruas, sem ter onde ir. Ninguém queria mais ser meu amigo. Eu estava doente. Minha pele ardia em brasa. Minha alma queimava. E eu não sabia porque.
Eu já não tinha mais pelos e quando me deitava meu corpo doía como se levasse uma facada, de tão magro que estava. Meus ossos batiam uns nos outros e eu podia ouvir seu barulho.
Foi num desses dias de calor das chamas do inferno que eu fui preso por eles. Eles não eram maus, mas também não sabia o que estava acontecendo com eles. Eu não conseguia entender...
Hoje, eu me encontro aqui, neste lugar horrível, sujo, escuro. Nossos amigos estão comendo os que de nossa espécie morrem. Viramos canibais. Mas também era a única coisa que tínhamos para comer, caso contrário morreríamos de fome.
E aqueles que moravam comigo já não me queriam mais. Não tinham o que fazer comigo. E eu ainda não havia entendido. Mas nós continuamos fiéis ao nosso propósito: Servir, guardar, dar carinho, ser compreensivo sempre. Fiel até à própria morte. Ou à própria sorte... Durante milhares de anos.
Me condenaram à morte por eu ter sido amigo. Me condenaram à morte porque não conseguem entender o sentido de Lealdade. Do princípio da Igualdade. Da Fraternidade. Vocês não conseguem entender um ao outro, não conseguem perdoar quando outro de vocês erra.
E eu aqui, fui condenado porque vocês nem sabem direito a razão, enquanto dou o último suspiro de minha vida...
O que me conforta é que muitos de vocês querem nos salvar e vão lutar muito por isso, como outrora lutei pelos seus.
Sinto saudades de você, velho índio... Mas agora que estou partindo, tenho certeza que vamos nos encontrar e dar aquele abraço, que há muito tempo não lhe dava...
Assinado,
Um cão que sofre, condenado à morte.
Fico feliz que tenham gostado da minha crônica.
ResponderExcluirUm abraço
Antonio Carroça